sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Desconexo



A cena foi um tanto incomum: eu estava na varanda, era madrugada e fazia um silêncio ensurdecedor. No céu havia tantas estrelas quanto nos céus das cidadezinhas do interior e eu senti uma vontade súbita de desaparecer, de largar tudo para trás e partir sem deixar endereço. Ao menos um dia na vida precisamos dar vazão aos nossos sentimentos ensandecidos... antes porém, algumas palavras de despedida.

Quando eu nasci havia tantos sonhos em mim, como estrelas no céu. Havia tanto amor que eu o aspirava sem perceber, mas tanto amor que eu mal tocava os pés no chão. E uma empatia tão grande, mas tão grande, que caberia o mundo inteiro, onde todas as misérias e desassossegos se desvaneciam como pó. Eu nasci Desconexo.

E sem qualquer nexo eu fui arremessado nesse mundo, mas de uma maneira tão abrupta e lancinante que me entortei na queda. Foi quando alguns sonhos se perderam, o amor se machucou e a empatia se esvaiu. Mas era só uma queda, um joelho machucado, uma lição, um poema. Eu continuei Poeta.

Quando Poeta eu aprendi a chorar, a lavar a alma e expurgar todas as coisas ruins que me acometiam no meio do caminho. Aprendi a cantar e exteriorizar sentimentos e assim, ao mesmo tempo que eles me tocavam, podiam ser ouvidos pelo mundo inteiro. Aprendi a me importar, a me incomodar e a gritar bem alto, porque quando dói de verdade é impossível sufocar e lá vai garganta a fora. Aprendi a amar, a fechar os olhos, a me entregar... foi quando, não sei de onde, antes que eu pudesse desviar, me atingiram em cheio. Pelo chão escorria tanto sentimento que ninguém dava conta de juntar... Eu morri Poeta Desconexo.

Em meio a tanta confusão e sujeira o meu espectro me olhava com pena, com nojo e desprezo. Eu inerte, lhe pedia ajuda com o olhar, enquanto os sentimentos eram confundidos, pisados, juntados como caco de vidro e atirados ao lixo. E aquela sombra que se parecia muito comigo, que há alguns segundos fazia parte de mim, me deu as costas e seguiu. Segui como Pilantra.

E o Pilantra, de tão vazio, ia juntando coisas que achava pelo caminho sem sequer diferenciá-las, porque qualquer coisa lhe servia. E ele acumulou tanta coisa, tanta coisa que nem conhecia, que abominava, regurgitava e depois engolia de novo. E isso o fez tão cheio, tão duro, tão frio que ele já não sonhava, não se importava, não esperava... Mas como nada daquilo era dele, quando se olhava no espelho, ou quando olhava para si mesmo não enxergava nada... porque já não havia nada, pois tudo se precipitara naquele dia em que eu havia abandonado a mim mesmo e as todas as coisas boas que um dia eu havia cultivado. Sem perceber o Pilantra voltou para o mesmo lugar onde jazia o Poeta, observado de perto pelo Desconexo e por um outro senhor que nunca haviam visto, um completo desconhecido. Mas mesmo o Desconhecido me parecia familiar...

E agora eu vou ser o Nada, porque esses senhores não conseguem chegar a um acordo e eu estou tão cansado, tão cansado... Devagar eu vou me desvanecendo pela madrugada e antes que a pena pouse nesta mesa, solitária, como se nunca ninguém a tivesse carregado, eu te peço, amigo, eu te rogo como uma última prece: não percas a esperança jamais...